E agora foucaltianes, vamos defender Michel Foucault ?

 Março 2021, há 37 anos de sua morte por complicações de AIDS Michel Foucault é acusado de pedofilia. O acusador não é uma de suas supostas vítimas, mas uma pessoa que diz tê-lo conhecido e o visto consumir a prostituição de garotos menores de 11 anos na cidade de Tunis nos anos entre 1966 e 1968 quando o filósofo aí residiu. 

As manchetes internacionais começaram já em fevereiro dizendo que o estavam acusando, e as nacionais começaram agora e estão sendo reproduzidas em massa nas redes sociais. No Brasil dizem que o filósofo está sendo acusado de Pedofilia, o que é estranho, pois a palavra mais adequada seria Pederastia, já que é mais coerente com o fato do qual o acusam. 

Isso revela a primeira artimanha da notícia pois faz parecer que não há problema para esta sociedade que se trate de relações homossexuais, mas sim que seja com crianças. Com isso, tentam colocar Foucault no lugar de abusador de menores como se ele estivesse ao lado de todos aqueles homens famosos das últimas décadas do século passado - como os endinheirados produtores do mundo do entretenimento denunciados pelo #MeToo - que recentemente vêm sendo acusados de ter abusado de mulheres e menores à época. 

O aparente silêncio sobre a homosexualidade do pensador é revelador do que não se diz sobre a moralidade de nossa época e é simbólico de uma acusação velada à homosexualidade, ao que esteve ligado e na base da tal liberação sexual nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX e, especialmente, do nosso conservadorismo renovado neste início do século XXI. 

O ACUSADOR não será considerado aqui. Me eximirei de qualquer comentário desqualificatório sobre ele, como tenho lido especialmente nos jornais internacionais, para não cair no tipo de argumento que nós feministas atacamos: o de defender o acusado desqualificando quem o acusa. 

Nisso reside outra das artimanhas da notícia, já que que a partir do momento que usarmos este argumento estaremos fazendo mais do que defender Foucault sob a prerrogativa de inocência até que se prove sua culpa, porém estaremos tocando na arma de nossos inimigos, os conservadores homofóbicos e misóginos que diariamente desqualificam as nossas denuncias sob a acusação de sermos previamente inaptas a ser escutadas, desqualificáveis de antemão para sequer falar. 

A acusação é séria, grave, e precisa ser verificada, em nome da memória do filósofo e também em nome de acabar com abusos que se ocorriam outrora agora já não podem ser tolerados.

Uma terceira artimanha presente na acusação é a própria difusão da notícia ao estilo das fakenews e das news catalisadoras dos Hatters de plantão, estes responsáveis por elevar as estatísticas de citações de um jornal ou de uma notícia nas redes. Para se ter uma idéia, só esta semana a manchete bombou tanto nos meios acadêmicos e das ciências humanas que o jornal X (que a noticiou) foi citado muitas vezes por perfis que não costumavam citá-lo. Mesmo tendo sido muito criticado, por ter publicado uma notícia sem qualquer checagem sequer das fontes ali citadas, a matéria rendeu para o tal jornal - que não citarei aqui para não fazer render mais.

"Se for fake, a gente desmente depois" costumava repetir um dos editores chefes de uma grande jornal. "Por hora a gente ganha likes e deslikes nas redes e nossos patrocinadores duplicam" é o argumento que se segue do raciocínio. 

Além do fato de que as vezes que nós (pesquisadoras e pesquisadores da filosofia) fomos marcades nas publicações de tal acusação e reepostamos essa matéria contribuímos para o jornal, outra armadilha ou artimanha na qual caímos é que também fomos colocades pessoalmente diante de uma questão: 

E agora, o que você diz? fale!!! se pronuncie!!! você vai defender isso??? 

Como pesquisadora e feminista e estudiosa de parte da obra deste filósofo vejo todas essas marcações que me provocam e exigem que eu me posicione, que exigem que eu compre a briga, que eu defenda ou linche o filósofo, como uma marca do espaço-tempo em que vivo e não como uma necessidade real de falar algo sobre minhas pesquisas. 

Além disso, vejo que a única postura que não me é dada como possível é a de não ter opinião e escolher permanecer distante e a espera de que as alegações sejam apuradas.   

Mesmo que pessoalmente eu tenha muitas razões para crer que se trata de mais uma fakenews ou de um oportunismo, como eu não conheci o filósofo e as pessoas que conheço que o conheceram e conviveram com ele também só podem emitir "opinião" sobre o fato, o melhor é tentarmos não acusar julgar antecipadamente. 

Porém, o que todos sabem sobre Foucault que podem nos levar a crer que seja culpado ou inocente? 

Michel Foucault foi um dos primeiros intelectuais de peso internacional, reconhecidos em vida, que foi abertamente gay e ele morreu das consequências da AIDS, a peste-gay segundo os conservadores dos anos 80. Ele se relacionava sexualmente com pessoas do mesmo sexo e de diferentes idades, alguns mais  jovens e de modo consentido e pouco tradicional aos olhos da época, assim como frequentava guetos homossexuais e lugares cujas práticas de sexualidade não eram/são moralmente aceitas. Também se sabe que nesta época a maioridade penal (e portanto o direito a deliberar sobre agir sexualmente) era de 21 anos, e é provável que muitos de seus parteners não a tivessem atingido. 

Todos esses fatos abrem precedentes para a acusação, porém deles não podemos deduzir que Foucault tenha abusado sexualmente de alguém, nem que tenha se relacionado sexualmente com crianças de 8 a 10 anos, como alega seu acusador. 

Atualmente na França, a família já começou uma guerra judicial contra o acusador, que pelo que tudo indica vai seguir sendo publicizada por algum tempo e à qual contribui para que sigamos nesse lugar de abutres sedentos pelas novidades e desdobramentos desse  reality show onde a pessoa emparedada não está viva para ser ouvida.

O que revela uma quarta  artimanha que diz respeito exatamente à nós e a esse modo de ver tudo como espetáculo sem separação entre o público e o privado* onde a principal consequência é que vivamos imersos num  voyeurismo como modo de ser hoje  e que nos degladiemos na arena da polarização, do hatterismo, dos julgamentos de antemão e do linchamento virtual. Nessa guerra onde tudo vale, só não parece valer o óbvio: a presunção de inocência. 

Uma última artimanha inerente à acusação e que não posso deixar de mencionar é aquela que faz dessa denúncia um ataque a cada um de nós pesquisadores e pesquisadoras das ciências humanas, especialmente aos que se dedicam especialmente a estudar o pensamento do filósofo. 

Isso porque, de um lado somos impelidos nos sentirmos mal, afinal a pessoa que escreveu as teses sobre as quais nos debruçamos durante décadas e que inclusive teorizou sobre ética, pode ser um criminoso e de algo bem desprezível. 

Mas, por outro lado, isso corrobora à conjuntura sócio-política atual (especialmente no Brasil) que nos joga naquela caixa ou covil onde somos ou adoramos os "comunistas comedores de criancinha" 

Para tudo isso, só tenho uma última coisa a dizer (para lacrar?)

Em lugares onde opera um regime de Estado de Direito e a democracia qualquer pessoa é inocente até que se prove sua culpa e responsabilidade. 

e há algo que aprendemos das teses de Michel Foucault (e também dos nossos feminismos e estudos de gênero) é que do fato de não podermos acusar ninguém antes de que se prove sua culpa, não se segue que não possamos avaliar e questionar as condições históricas, sociais, epistêmicas e discursivas dentro das quais certas acusações se dão. Aprendemos das teses deste filósofo que todo processo discursivo de qualificação de algo ou alguém ocorre dentro de seu tempo sob a ordem dos jogos entre silêncios e pronúncias que formulam este tempo. 

Assim que:  antes de entrarmos nas dobras dos discursos acusatórios, tentemos pensar genealogicamente (foucaultianamente) nas linhas envolvidas nas pronúncias de nosso espaço-tempo que permitiram que essa acusação saísse à luz hoje e que sintamos este desconforto com a ela. 

[*É claro que certos atos do âmbito do privado, como as violências (sexual e outras) precisam ser denunciados e seus responsáveis julgados e penalizados, mas o que me parece gritante nesse caso especificamente é o quanto nosso interesse está na vida privada dos envolvidos, em sua intimidade, personalidade, sexualidade...]  

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