O cão de David Hockney e a temperatura humana de sua pintura.

Véspera de Natal de 2020, pandemia mundial, todo cuidado é pouco, alguns familiares são grupo de risco e isso significa não viajar e não vê-los presencialmente agora. Fica tudo virtual. Este ano tudo tem sido assim, mais pela janela da tela do computador e do celular do que através do tato, do olfato e da experiência do corpo-presente, imerso.

Chove, aqui chove muito hoje, e a chuva é um dos fenômenos mais espetaculares e incríveis que  posso entender. A água, tudo que tem a ver com a água é de uma magnificência e de um explendorosidade para mim. Mesmo que essa palavra ex-plen-do-rod-sidade nem exista. 

Na tela do computador passam imagens, e imagens, e imagens, e algumas sempre se repetem e me chamam a atenção: são as réplica das pinturas do David Hockney. Meu algoritmo me enche delas.

Desde que morei em Londres por uma temporada tenho essa paixão pelo pintor. Nunca me perguntei especificamente porque gostava tanto, mas provavelmente se tivesse que responder naquela época teria dito que é porque realmente são bonitas, intimistas, as cores pastéis e primárias são calmantes, retratam um pouco do nosso modo de vida atual: privado, individualista, caseiro e solitário, mesmo que com pessoas. Se pensasse um pouco mais, diria que é porque são pinturas meio ingênuas (naif) pois é sempre um único ponto de vista, quase como uma foto. 

De fato, o pintor diz que se inspira nas suas fotos. Pinta um senhor e uma senhora, velhos, lendo o jornal na sala de uma casa. A mulher pousa, preocupada com a auto-imagem, o homem se sente seguro para não se importar com o retrato, submerso no jornal. É muito uma  foto, do homem, da mulher, dos nosso tempos. Teria coisa mais simples e mais quotidiana que isso? 

Até daria para dizer que é um pintor de imagens entediantes (boring), e talvez eu goste porque trazem representações a partir dos enquadramentos dos nossos tempos. Para mim revelam os quadros dos nossos tempos. Mas também os meus próprios. 

A tese sobre os "enquadramentos" épocas e territoriais é desenvolvida pelo sociólogo Erving Goffman, que eu conheço bem. Já li também as teses de Judith Butler sobre os enquadramentos (frames) que são modos de narrar pelas imagens eventos do nosso agora e esses modos dizem muito de como nosso tempo tem lidado com tudo. 

Mas as pinturas de Hockney não se reduzem a isso. Estou certa disso e não sei explicar todos os porquês, mas posso lançar alguns: 

1. A transparência da água. Ele consegue pintar uma pessoa dentro da água. Não é algo fácil pintar a transparência, ele mesmo disse que estragou  várias telas até chegar naquela transparência, naquele reflexo de luz e criar uma  pessoa nadando. 

2. O tema onírico e infantil. Não são imagens oníricas como eram as do Dali - que apesar de datadas ainda marcam um estilo e tocam o meu-nosso imaginário-  são um sonhos que projetamos, onirismo coitado, sonho lúcido que exprimem nosso desejo, daqueles sonhos restos do dia, do desejo de calma, da paisagem, do simples e também as memórias. 

A chave para mim é esse encontro do tempo: o passado e o futuro, enquanto a projeção do desejo individual, de uma só pessoa e de qualquer pessoa, que se encontram ali naquela pintura-retrato. 

Aquela jovem na sala com a gata branca sou eu, a velha sou eu, aquele jovem é  meu marido, o velho também, aquele gato é alguns dos meus gatos de ontem, de hoje, ou de amanhã. A sala é uma das minhas casa. A piscina é uma das que poderei me banhar um dia, ou que já me banhei outrora... sou eu, somos nós, todos, é a nossa vida. 

Não a vida como ela é efetivamente, mas como ela deveria ser segundo nós pensamos que deve ser hoje, calma e morna. 

Mansa como bicho sem fome, dirá o poeta brasileiro que escreve cordéis. 

O  morno das pinturas do Hockney aquece meu coração e todos os nossos corações. O morno de um dia de verão refrescado pela piscina; do dia de frio aquecido pelo chá das cinco e pela companhia do animal de estimação e do marido, esse amor de uma vida que virou dia-a-dia.

O morno é o dia de férias no sul da França, lugar em que o pintor e também eu costumamos ir nesse período. São os troncos dos pinos das plantações de reflorestamento da região das Landes francesa deitados na beira da estrada, dias e dias, esperando o caminhão que nunca vemos, depois de terem sido cortados por máquinas que raramente só ouvimos.  Esses troncos que só aparecem e desaparecem. As árvores estão e depois não estão, e no lugar delas logo crescem novas árvores. E ao longe sempre há essa verticalidade dos troncos que cortam o horizontal do infinito

É o ciclo da vida na sua dimensão mais natural, onde as violencias todas estão atrás da tela. Toda a história de abusos cruzados do casal da sala está fora do retrato, mas na expressão corporal de ambos e na solidão de suas caras. 

A motoserra que cortou os troncos e a máquina que arranca as árvores não estão no retrato, como não estão os caminhões que as transportam nem seus donos. A vida e a morte acontecem como o correr das águas, como cai a chuva, na naturalidade de seus ciclos. 

Entre essas  imagens não tão conhecidas estão centenas de quadros de seus cachorros, o cão que dorme na almofada, entre um carinho e outro do dono, que observa o mestre pintando, que vive e espera, e não projeta nada, que só disfruta daquele instante "fofinho" e seguro  

Os cães de Hockney são de suas pinturas menos conhecidas, e apesar de intensas e simbólicas como as outras, não tem o mesmo valor (de mercado) que as de suas piscinas ou paisagens. Mas ele insiste em pintá-los. Porque são os retratos de seus amores, porque vê neles algo seu que quer compartilhar com os apreciadores de suas obras. 

O cão de Hockney é, a meu ver, a chave de suas pinturas, é a chave da dimensão que o pintor toca com todas as outras, é o termômetro que revela a temperatura de todas as suas pinturas: 36 graus Celcius, o morno do sangue humano que pulsa sem sobressaltos, é o bicho quando se sabe a salvo. 


*Este texto é um convite, para conhecermos e vermos essas obras lindas e um presente de natal a todas minhas amigas e amigos. 


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